quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

a ILHA

“A elipse prenuncia o outro lado, o sol, a beleza em braços abertos, entre o esperar sombra a aldeia o fisco, os pólenes pinta de entres a cal que em Junho regressa para a alamar as paredes. O movimento enconca-se sobre o espaço maternal, o regresso ao berço que embarca o quarto ao dia em que o meu idioma desapareceu.
A casa.
 Aqui a saudade é a ruína de um hemisfério, a vertigem catártica, um ritual anterior prisioneiro ao meu corpo, no agora. Dorindo a viagem, acabo de desconstruir o lugar de onde me deixei.
Acendo o cigarro rizomaticamente.
A tarde continua a ser a fenda entre a reconquista das origens. Os meus olhos. Volto a mim, no cheiro silvo da noite. O grito nórico na terra onde prisioneira embate a papoila, essa essência vermelha onde as minhas palavras se dinamitam. Eu, hei-de relembrar dos campos nos horários mais abatidos, o regresso ao trabalho-cidade.
Ao fundo da rua, a euforia de umas mãos enrugadas que se estendem para construir embates e destruir o abismo do tempo, esse lugar espeço onde plenitude é uma espécie de linfa interminável. Refugio-me no fluxo encantatório do negro alcatrão que recorta e reconhece a entradas de todas as casas, devassando-me de entre uma dramática ausência.
O grito varzino do ar puro por onde os gatos anaçam. A essência alça o caminhar, e o rosto dói no rastro da boca que ao mesmo tempo reordena a alegria, o astro, o coração que duplica a voz dos outros, dos que estão além da contradança da pele e que minusculamente me fazem companhia saudando-me. É tarde, estou cansada, as alegrias apesar de abertas continuam em silêncio. Os cães passam por mim e sem julgamento, sentem o meu alvoroço, o lugar estrangeiro que reconhecem pela brisa que os destelha por instantes.
Acaba-se o tabaco, o vício corrói e devolve-me a imagem em que eu fumava dentro da adolescência superpovoada de fascínios, campos e de noites portadoras dos amplexos gracejos, onde eu era um pequeno pássaro furtivo e voava incessantemente pela planície esplendorosa onde guardo ainda hoje as minhas mais secretas inconfidências.
 Hoje sou a águia nas tonalidades de todo um entardecer na estalada dos muros que murmuram entre áulicos dias.
 Os astros, áspides, as raízes todas e as estrelas o útero onde planam e reatam as encruzilhadas narrativas, o céu ortográfico que cai do papel para submergir nas ruas desertas.
O vento soa sobre os tragos do vinho que inevitavelmente sove os arreios no copo.
 Gera-se um instante soberano, o regresso da memória aonde destinto as parábolas e as falésias ilesas do Alentejo.”


 Luísa Demétrio Raposo
* pequeno excerto do meu primeiro romance  " ILHA"

foto  Maxim Vakhovskiy

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